quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Cicatrizes dos nossos erros


O asfaltamento das estradas da Amazônia apressa a devastação do verde e o ritmo de ocupação da floresta. Mas qual é a alternativa? O asfalto é a garantia de qualidade de vida para milhões de moradores da região
Vistas do alto, as estradas da Amazônia assemelham-se ao rastro da passagem de um furacão. Estima-se que 80% das áreas de floresta devastadas estejam a menos de 5 quilômetros de uma delas. Não se poderia esperar outra coisa dessas rodovias, pois elas foram criadas nos anos 70 precisamente para abrir caminho para a colonização. Quatro décadas depois, a Amazônia está malservida por estradas esburacadas, atoleiros e toda espécie de obstáculo ao trânsito de pessoas e cargas. Quase metade da malha rodoviária é considerada ruim ou péssima pela Confederação Nacional do Transporte. Outros 40% são apenas regulares. Tal situação coloca o Brasil diante de um dilema. Não se pode tolerar que uma região com o dobro do tamanho do México e habitada por 25 milhões de brasileiros fique à mercê de um sistema viário de padrão africano. Por outro lado, existe hoje a consciência de que a floresta precisa ser preservada e que cada estrada é um vetor de desmatamento. Elas não apenas atraem migrantes, mas também servem de ponto de partida para milhares de caminhos vicinais abertos por madeireiros, garimpeiros e agricultores. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) calculou que as estradas não oficiais somam 170 000 quilômetros de extensão. Isso significa que, de cada 10 quilômetros de estrada na Amazônia, 7 foram rasgados ilegalmente no mato.

As grandes rodovias foram abertas pelo governo federal, que promoveu a ida de colonos para a Amazônia na década de 70. Hoje, depois de um prolongado período de abandono, as autoridades têm a obrigação de pôr essas vias em ordem, garantindo o bem-estar de quem mora nesses lugares. A dificuldade é como fazer isso e, ao mesmo tempo, impedir que a devastação avance. O governo federal já decidiu asfaltar as três principais estradas que rasgam a Floresta Amazônica - e, no que diz respeito à preservação, seja lá o que Deus quiser. Não precisaria ser assim. Duas das rodovias - a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém - precisam do asfalto com urgência. Elas atravessam áreas densamente povoadas, já bastante desmatadas, e são necessárias para o desenvolvimento econômico e para melhorar a qualidade de vida da população que habita suas margens. O projeto da terceira, que liga Porto Velho a Manaus e atravessa uma região de floresta intacta, se parece demais com os erros do passado e faz total sentido que seja cancelado.

Manoel Marques{txtalt}
CAMINHO DAS ÁGUAS: Balsa navega no encontro dos rios Negro e Solimões: 90% das cargas transportadas na Amazônia vão de barco
Como a maioria das rodovias é de terra, a temporada de chuva torna o tráfego difícil, quase impraticável, durante metade do ano. Os produtores de grãos do Centro-Oeste brasileiro bem que gostariam de usar a BR-163, que liga Cuiabá, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará, como corredor de exportação. Mas o asfalto só existe no trecho mato-grossense. Depois, são 937 quilômetros de estrada de terra. Durante o período de chuvas, os atoleiros impedem a passagem de veículos pesados. "Já demorei trinta dias para percorrer um trecho de 750 quilômetros", diz o caminhoneiro João Jua­rez Barão, um paranaense que transporta cerâmica para o Pará e retorna com madeira para o Sul e o Sudeste. Por isso, os grãos do norte de Mato Grosso são escoados pelos portos de Santos e Paranaguá, a mais de 2 000 quilômetros de distância. Isso atrasa a chegada da carga aos Estados Unidos e à Europa em pelo menos quatro dias. Estima-se uma perda de 480 milhões de reais por safra devido ao acréscimo no custo do frete. Mais de 800 000 pessoas vivem às margens da BR-163.

No norte de Mato Grosso, onde as chuvas são regulares e o terreno é plano, perfeito para a lavoura mecanizada, a área de influência da estrada engloba 50% da produção de soja do estado. Ali fica Sorriso, a capital mundial da soja, com produção de 2,5 milhões de toneladas por ano. No trecho paraense, onde o relevo é acidentado e o asfalto ainda é só uma promessa, os moradores passam longos períodos de isolamento. No inverno, época da chuva, os preços disparam devido aos custos do frete. "Os alimentos ficam, em geral, 40% mais caros", diz Henrique Borges, dono do mercado que abastece o município de Trairão, com 15 000 habitantes, a 350 quilômetros de Santarém. "A demora é tanta que não compensa trazer verdura para a cidade."

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